terça-feira, 16 de março de 2010

Antibióticos

Na passada sexta-feira, foi exibido um interessante documentário na RTP2 sobre o antibiótico. Descoberto por acaso, o antibiótico criou a ilusão de que a humanidade iria finalmente levar uma vida sem doenças (pelo menos as infecciosas dada a falta de conhecimento genético da altura) e até mesmo viver num ambiente completamente livre de micróbios. Na altura, tal descoberta revolucionou a Medicina, foi de facto possível tratar doenças que até então não possuíam uma terapêutica eficaz e que conduziam irremediavelmente à morte. A natureza competitiva do humano levou a que este se descuidasse um pouco relativamente ao propósito com que o antibiótico foi criado, tratar doenças, fazendo com que se "esbanjasse" a descoberta noutras aplicações, como por exemplo ter-se verificado que os animais de quinta engordavam mais facilmente se tomassem antibióticos. Então foi usado como "engorda" e foi lançado em vários ecossistemas de forma a que o mundo estivesse livre de possíveis focos de doença... Os hábitos de higiene foram inclusivé quase postos de parte, uma vez que vivendo num ambiente limpo já não havia a necessidade de nos lavarmos e mesmo que se ficasse doente, o antibiótico resolvia o problema. Porém, o "micróbio" que já levava uns largos milhões de anos de existência, que assistiu à ascenção e queda do dinossauro, não estava disposto a perder a guerra declarada ferozmente pelo humano e o excesso de antibióticos foi, até, um trunfo para a sua evolução e aumento da sua patogenicidade.

Com a evolução dos conhecimentos genéticos, sabe-se agora que as bactérias ao se multiplicarem estão sujeitas a mutações no seu código genético. Então num meio rico em antibiótico a probabilidade de mutações aumenta consideravelmente. Estas mutações estão também presentes nos seres humanos como infelizmente sabemos, mutações estas que aumentam a sua frequência quando somos expostos a algo que somos susceptíveis (como por exemplo uma radiação nuclear); mas mesmo sem qualquer tipo de mutação todas as pessoas são diferentes (excepto os gémeos "verdadeiros") dada a variabilidade genética da população. Numa qualquer doença de origem bacteriana, o indivíduo afectado possui largos milhões de bactérias pelo que, como se imagina, podem existir diferentes bactérias (ainda que da mesma espécie) precisamente por haver variabilidade genética entre elas também; umas maiores, umas mais fortes, outras mais resistentes... Num meio rico em antibiótico, antibiótico este que seja o eficaz na eliminação de determinada estirpe bacteriana, a eliminação de bactérias é massiva e o ideal é que seja uma eliminação a 100%. Porém dada a sua variabilidade genética, a velocidade exponencial com que elas se multiplicam aliadas ao aumento de mutações precisamente por estas estarem sujeitas ao tal factor a que são susceptíveis, faz com que a probabilidade de surgir uma aberração na espécie aumente, e quando inicialmente tínhamos um grupo de bactérias que não possuíam resistência ao antibiótico eis que surge, numa ou mais mutações simultâneas entre os milhões de bactérias, um ou vários exemplares mutados que adquiriram resistência ao antibiótico. Estas bactérias resistentes vão-se multiplicar com a mesma facilidade que as outras com a vantagem (desvantagem para o hospedeiro) de serem resistentes ao antibiótico que dizimou a "família" com um sentimento enorme de vingança.

Quando se verifica que determinada espécie de bactérias é resistente a um grupo de antibióticos que inicialmente era sensível, parte-se para outro grupo de antibióticos diferentes dos primeiros mas com a mesma capacidade terapêutica. O problema é que cada vez mais as bactérias adquirem resistências a um, dois, três e até mesmo todos os grupos de antibióticos existentes devido à sua má utilização quer por serem usados quando não se devia quer por serem mal tomados...

Actualmente existem algumas estirpes de bactérias multi-resistentes para as quais estão a ser desenvolvidas novas linhagens de antibióticos, mas ainda sem resultados comprovados em humanos. Estas bactérias surgem em meios onde existem grandes concentrações de produtos antibióticos e desinfectantes e onde haja uma afluência de biodiversidade bacteriana, como por exemplo os hospitais. É frequente ouvir-se dizer que alguém foi ao hospital tratar-se de uma doença X e saiu de lá com uma pneumonia por exemplo. São as chamadas doenças nosocomiais. Estes locais são propícios a que as bactérias mais fracas sejam eliminadas restando apenas as que possuem resistências. Para quando surgirem antibióticos eficazes contra tais estirpes é necessário ter alguns cuidados para que não continuem a adquirir resistências...

A reter:

- a classe médica é uma das grandes responsáveis pela actual situação uma vez que receita antibióticos indiscriminadamente, não só por receitar antibióticos sem saber primeiro a qual a bactéria é susceptível como também, e pior ainda, receitar antibióticos em quadros virais ou fúngicos. O antibiótico SÓ é eficaz contra bactérias. Vírus e fungos são tratados com outra linhagem de fármacos que não o antibiótico. Combater uma gripe com antibiótico apenas permite que as bactérias que possamos ter adquiram resistência e permanecemos igualmente gripados pois o vírus não é afectado! Procurem ter o cuidado de se informarem sobre a vossa doença sempre que vos for receitado um antibiótico e perguntem ao vosso médico o porquê de ser receitado aquele antibiótico e não outro tratamento. (isto não é duvidar do trabalho do profissional de saúde, somente se falarem sobre a vossa doença podem indicar-lhe um outro sintoma que o poderá orientar para um tratamento completamente diferente;

- quando vos for receitado um antibiótico, tomem-no ATÉ AO FIM. Não parem se sentirem melhoras. Cada dosagem de antibiótico foi cientificamente calculada para garantir que a estirpe bacteriana é definitivamente eliminada. Sentir melhoria não significa que o organismo já esteja livre de bactérias, apenas podem não estar em número suficiente para provocar sintomas, mas estão lá! Com a paragem da toma do antibiótico estão a permitir que as poucas bactérias atordoadas que resistiram se multipliquem de novo, possibilitando que existam mutações favoráveis a que elas resistam a esse antibiótico, provocando novamente a doença mas mais resistente a esse antibiótico e na pior das hipóteses já não fará efeito.

- respeitem o horário das tomas. Por vezes, um esquecimento de 5 minutos pode parecer inofensivo. Cada toma possui um tempo previsto de circulação no organismo em que ao fim de determinado tempo, já não estará a fazer efeito algum, como se parássemos de tomar o antibiótico. Se as tomas, por exemplo, foram calculadas para serem feitas de 8 em 8 horas significa que a 1ª toma estará em circulação no organismo durante 8h30 por exemplo, para que a 2ª toma ao fim de 8h a contar da primeira, demore 30 minutos a estar em circulação garantindo que a dosagem esteja sempre nos valores estipulados. Suponhamos que nos atrasamos 5 minutos na segunda toma. Como a segunda toma demora 30 minutos a entrar em circulação, apenas entrará em circulação 8h35 minutos após a 1ª toma o que faz com que o nosso organismo esteja vulnerável por 5 minutos. A reprodução bacteriana é exponencial (quantas mais houver ainda mais se multiplicarão) e é feita num curtíssimo intervalo de tempo, o que significa que os 5 minutos em que o organismo está sem protecção poderá ser excelente para que a colónia de bactérias adquira novos reforços e, mais uma vez, possa adquirir resistência. Basta uma bactéria resistente para que ela produza um novo exército sem que o antibiótico lhe cause qualquer perturbação...

- por último, e não será certamente a última coisa que se deverá ter em conta, o antibiótico não acaba depois de ser tomado. Pouca gente tem a noção disto. O princípio activo do antibiótico vai estar em circulação, poderá perder a sua força terapêutica ao fim de algum tempo, mas vai ser expulso do organismo e continuar por mais algum tempo no ambiente! Ao defecarmos/urinarmos o antibiótico este seguirá o seu caminho até ETARes onde felizmente será tratado e removido do ecossistema, ou não passa pela ETAR e seguirá livremente até aos rios e até às costas. Esta acumulação de todos os antibióticos de todas as pessoas que o excretam vai-se tornar novamente um local, como falei mais acima no caso dos hospitais, excelente para que haja a selecção natural de espécies bacterianas multi-resistentes. Estes antibióticos vão eliminar todas as bactérias sensíveis por onde passem, é um facto, mas vão sobreviver as que possuíam resistência a eles, produzindo novos exércitos extremamente perigosos para a Saúde Pública. Um dos exemplos que vos posso dar são as fezes das aves marítimas, como as gaivotas, nos passeios do cais ou nas praias para onde os antibióticos se dirigem através dos rios. Estas fezes ricas em agentes bacterianos em contacto com esses antibióticos vão possibilitar a aquisição de resistências por parte dessas bactérias. As fezes vão secando com o tempo até se transformarem num pó ultra-fino que vai ser dispersado pelo vento. Ora este pó vai ser inalado como todos os restantes pós que nos causam alergia, com a diferença de possuir bactérias extremamente resistentes e potenciadoras de graves doenças que na pior das hipóteses serão intratáveis...

Cabe-nos a nós sermos racionais na utilização destas "armas biológicas" que poderão causar uma destruição maciça de bactérias mas que se podem virar contra nós a qualquer momento. Leiam bem as bulas (papel de instruções) dos antibióticos para saber se de facto se adequa ao tipo de enfermidade que possuem mas se o começarem a tomar não parem (com a óbvia excepção de serem alérgicos ao antibiótico salvo seja..)
Com uma utilização cuidada e sensata os antibióticos continuarão a ser uma ferramenta terapêutica eficaz, surgirão novas linhagens de antibióticos capazes de eliminar as principais ameaças multi-resistentes que existem mas depende muito da nossa parte fazer com que estas novas linhagens não sigam o exemplo das anteriores...

Saúde!

8 comentários:

Eduarda disse...

Olá! Como tu sabes também sou técnica de análises:p. Como já trabalho vou deixar aqui um exemplo que muito frequentemente acontece:
É habitual as pessoas irem aos médicos com sintomas de infecção urinária e o médico através de um teste rápido da urina, que não diz qual a bactéria, ou mesmo só com a descrição dos sintomas receitar um antibiótico. Isso é um erro. O médico deveria primeiro pedir a indentificação da bactéria tal como a sensibilidade e a resistência dela aos diversos antibióticos. Este tipo de comportamento dos profissionais de saúde podem levar às infecções recorrentes nas pessoas.
Faço um apelo a todas as pessoas para que antes de iniciarem um antibiótico confirmem se é o correcto para a infecção que têm.

Gisela disse...

Pois, realmente isso seria o ideal! Mas infelizmente não pode retratar a nossa realidade. Pq ora reparem: uma pessoa com infecção urinária necessita de rapidamente ser tratada para que a infecção não evolua, só que acontece que a maioria das vezes não é fácil conseguir uma consulta, e se pelo meio ainda for necessário ir ao laboratório, esperar pelo resultado e mais tarde ir novamente ao médico...
Qt à exposição do Espinha, apesar de alongada, está mt bem...só corrigiria uma coisa...desaconcelho o público em geral a ler o folheto informativo de qq medicamento.

Espinha disse...

Olá Gisela, eu prometi a mim mesmo que iria ser mais sintético e penso que os novos posts já são mais apelativos em tamanho :)

É verdade o que dizes em relação ao tempo de intervenção, mas imagina que um doente apresenta uma infecção urinária resistente a um antibiótico usualmente perscrito por um clínico. Esse doente não só estará à espera da consulta para ter esse antibiótico, vai "perder" tempo a seguir esse tratamento ineficaz, mais tempo para ter a tal nova consulta, ainda mais o tempo laboratorial, nova consulta para avaliação de resultados e só depois teria o tratamento adequado... O ideal não seria o meio termo uma vez que o tempo laboratorial são 24h? (acredito que a incidência de casos resistentes seja ainda bastante menor que os casos que são tratados eficazmente sem o diagnostico laboratorial mas não será uma medida que impeça o aumento dessa mesma incidência?)

Quanto às bulas, mantenho o que digo :p até porque um doente pode ter uma alergia conhecida a algum princípio activo do medicamento cujo médico pode não ter sido informado e essa leitura pode salvar o doente de uma reacção grave. Por que desaconselhas?

Espinha disse...

lol e graças a voces as duas, a publicidade já tratou de nos dar uma solução! Tena! Rápida absorção de doenças urinárias! Muito melhor que qualquer antibiótico! Mas acho ser melhor criarmos contentores adequados para as tenas usadas senão o problema mantém-se :p

Gisela disse...

Desaconcelho pq a maioria das pessoas ao ler o FI acaba por optar por ñ tomar esse medicamento (tal está comprovado). As pessoas ficam assustadas com a gravidade e quantidade de reacções adversas e em regra geral não entendem as indicações terapêuticas de determinado fármaco.
Qt ao k disseste relativamente à ida ao laboratório como primeira opção concordo que deveria ser a primeira orientação para o tratamento.
Mas então tb convém nem nos lembrarmos nas pressões que os médicos sofrem agora para cortar nas despesas do estado... Pressões no sentido da avaliação da classe médica e do desempenho das usf (unidades de saúde familiar).
Enfim, ridicularidades...

Espinha disse...

Mas então, se tal se comprovou, por que continuam a existir bulas nos medicamentos? :p

Gisela disse...

Para as puderem ler quem as entende e pq não é obrigado a saber tudo decor... Dah,lol.

Patrícia disse...

Por essa prática médica de emergência sem critérios, com 34 anos e saúde perfeita, tive que ficar 30 dias com sonda de demora. E acabei de passar por outro episódio em que me receitaram antibiótico sem o antibiograma e depois, em novo exame, constatou-se que não surtiu efeito. Estou ainda nessa fase do erro e acerto. Me sinto uma cobaia.